Essa história meus
livros dos tempos de escola não contaram; talvez por desinteresse, talvez por
ignorância... Mas o episódio ficou registrado pela historiografia dos povos que
interagiram com o desenvolvimento da história da nação brasileira. Pela importância
documental, pela coragem de vir tão longe pregar o Evangelho, pelo testemunho
de fé, por tudo que representa e pode representar para a fé protestante no
Brasil, desejo, sinceramente, que este episódio nunca mais seja esquecido.
Como essa história começou
O
primeiro Culto protestante das Américas foi celebrado, muito provavelmente, no
Brasil. Justo no país que ficou historicamente tão marcado pela influência de
uma colonização católica-romana-jesuita.
Em
tempos remotos, poucas décadas após o controverso descobrimento destas terras
conhecidas como Brasil, houve uma tentativa de se estabelecer uma pequena
colônia francesa no Rio de Janeiro. Naquela época tanto os portugueses quanto os
franceses constantemente visitavam a costa[1]
estabelecendo contato com os “selvagens” locais para negociar, principalmente,
a extração do pau-brasil.
Esse
projeto colonizador, também conhecido como a França Antártica, teve suas
peculiaridades. O jovem aventureiro e vice-almirante francês Nicolas Durand de
Villegaignon (1510 -1571), com o apoio do próprio rei da França Henrique II, aceitou
o desafio de estabelecer uma colônia no Brasil chegando ao Rio de Janeiro em
1555. O nível moral e religioso da recém-estabelecida colônia era preocupante;
Villegaignon decidiu “importar” franceses de boa índole para influenciar os que por aqui já haviam
chegado.
Villegaignon
escreve uma carta[2] a
um antigo conhecido, o reformador João Calvino, que envia 14 huguenotes (nome
dado aos protestantes calvinistas na França) que chegam ao Brasil no dia 7 de
março de 1557. No grupo destaca-se a presença de 2 pastores e a do o jovem Jean
de Léry (na época com 22 anos) estudante de Teologia, que atuou como sapateiro
na Colônia. Após o regresso dramático para a França Léry escreve a obra Histoire d’un voyage faict en la terre du
Brésil publicado na Europa em 1578, que se tornou um livro de “viagens e
aventuras de grande sucesso” no Velho Continente, rapidamente traduzido para o
latim, alemão e holandês. No Brasil com o título Viagem à terra do Brasil, foi publicado em 1980 pela EdUSP. Esta é
a principal obra que nos traz o relato dos protestantes (calvinistas) que
perderam a vida em defesa da fé bíblica no Brasil Colonial. Nesta obra também
estão registrados dois cantos tupis, que os historiadores consideram o
documento escrito mais antigo da música ameríndia.
Calvinistas no Brasil Colonial parte I: O primeiro culto protestante
Apesar
de o termo “missionário” ainda não estar em voga no vocabulário evangélico do
século XVI, talvez este tenha sido o primeiro movimento missionário em direção
ao Novo Mundo. Motivados pela promessa de “fundar um puro serviço a Deus” esses
homens estavam dispostos a cruzar o Oceano, convictos de que sua finalidade era
“anunciar o Evangelho na América”[3].
Acolhidos
com receptivas palavras de Villegaignon, os calvinistas chegaram ao Brasil numa
quarta-feira, dia 10 de março de 1557,
e neste mesmo dia realizam um culto descrito por Léry
como em conformidade com ritual das igrejas reformadas da França[4]. Na
ocasião cataram o Salmo 5, e o pastor Pedro Richier, integrante do
recém-chegado grupo, realizou a pregação com base no Salmo 27 “Uma coisa peço ao SENHOR,
e a buscarei: que eu possa morar na Casa do SENHOR todos os dias da minha vida”. Não sabiam eles que haviam acabado de
realizar “o primeiro culto protestante da história do Brasil e do Novo Mundo”.[5]
Calvinistas no Brasil Colonial parte II: A primeira celebração protestante da Ceia do Senhor
Conforme
nos informa Jean de Léry, o almirante Villegaignon não apenas consentiu que se
realizassem orações públicas todas as noites após os trabalhos de edificação do
Forte, mas também ordenou que os pastores pregassem duas vezes aos domingos,
que os sacramentos fossem administrados de
acordo com a pura Palavra de Deus, e que, se necessário fosse, se aplicasse
a disciplina eclesiástica. Por isso, no dia 21 de março de 1557, pela primeira vez foi celebrada a Santa Ceia
de Nosso Senhor Jesus Cristo (nos moldes da igreja protestante), em território
brasileiro.
Calvinistas no Brasil Colonial parte III: Um testemunho que entrou pra história “A Confissão de Fé de Guanabara”
Para
justificar a condenação dos calvinistas por heresia, Villegaignon os forçou a
responderem um questionário. Aprisionados, de posse de uma bíblia, e em algumas
poucas horas, elaboram um documento que entrou pra história como uma das mais
antigas e emocionantes confissões de fé cristã.
O
documento “A Confissão de Fé de Guanabara” foi escrito em Latim com tinta feita
de pau-brasil e é composto de 17 artigos enfaticamente iniciados, em grande
parte, com a expressão “Cremos...”.
Tais artigos podem ser divididos nos seguintes temas: (1-4) Trindade e a pessoa
de Cristo; (5-9) Ceia e Batismo; (10) o livre-arbítrio; (11, 12) a autoridade
dos ministros para perdoar pecados e impor as mãos; (13-15) casamento, divórcio
e castidade; (16, 17) intercessão dos santos e oração pelos mortos.[6]
Alguns
pequenos detalhes nos chamam a atenção na elaboração deste documento: 1) Jean
Du Bourdel, que foi o redator, apesar do conhecimento do latim, não possuía uma
formação formal em teologia; era leigo. 2) O pouco tempo que tiveram para
produzir o texto (aproximadamente 12 horas). 3) Pouco recursso disponível – uma
bíblia –, e a situação totalmente adversa: a prisão, a pouca luminosidade e a
pressão de saber que aquele documento representaria – talvez – a própria
sentença de morte. 4) A familiaridade com os Pais da Igreja; são citados Agostinho,
Tertuliano, Ambrósio e Cipriano. 5) A solidez teológica do documento que se
harmoniza com as principais confissões da fé bíblico-reformada.
Calvinistas no Brasil Colonial parte IV: Os primeiros mártires protestantes da história do Brasil
O
almirante Villegaignon logo foi visto como um fingido, que inicialmente demonstrava piedade e disposição para
acolher com ternura paternal os calvinistas, mas logo submeteu os visitantes a
um cotidiano de trabalhos forçados e condições de difícil sobrevivência. E,
repentinamente, todo o fervor pela fé reformada se converteu em perseguição
religiosa com radicais discordâncias, principalmente, acerca do sacramento da
Santa Ceia; o almirante passou a, enfaticamente, advogar em favor dos dogmas do
catolicismo romano, exigindo uma retratação dos calvinistas.
Para
o almirante, Cristo estava fisicamente presente na Ceia, era necessário adicionar
água no vinho da Ceia, e sal na água do batismo. Calvino e seus seguidores
foram declarados hereges.
Para
tentar escapar da crescente perseguição os protestantes franceses fugiram do
Forte e tomaram uma embarcação rumo a França. A superlotação do modesto navio
quase provoca um naufrágio ainda na costa do Rio de Janeiro, e, temerosos, 5
huguenotes (Pierre Bourdon, Jean Du Bourdel, Matthieu Verneuil, André la Fon e
Jacques Le Balleur) resolvem não seguir viagem. Encontrados por Villegaignon,
são aprisionados para serem executados como hereges, mas antes lhes foi exigido
declarar sua fé por escrito.
Na
obra Los Mártires de Guanabara.
Barcelona: CLIE, 1979 de John Gillies, encontramos uma das descrições mais
emocionantes do martírio destes irmãos em Cristo:
A
situação, após a retirada dos encarcerados da prisão, se tornou mais tensa; não
sabiam para onde estavam sendo dirigidos, contudo tinham certeza de não estarem
em caminho da casa do almirante, pois passaram reto ante a porta frontal e
seguiam caminhando sobre as rochas rumo ao cume nordeste da ilha.
Estavam
todos cientes de que haviam arriscado suas próprias vidas ao terem escrito
aquela confissão, mas pensavam que o máximo que poderia ter acontecido era
terem sido lançados ao cárcere por algumas semanas, e, no piro dos casos, o
exílio; o que era destino comum àqueles que estivessem em desacordo com o
almirante.
A ordem de ficarem
em silêncio não foi plenamente obedecida, ao invés disso, Bourdel começou a
cantar, uma paráfrase do salmo 100. Logo em seguida o almirante Villegaignon
questionou Jean Du Bourdel se ainda permanecia firme em suas idéias, este,
porém, parecia mais firme que nunca e exortava-os a que permanecêssemos firmes
e inabaláveis e a que reconhecessem que no Senhor todo labor não seria em vão.
A uma ordem alguns grandes sacos foram
colocados à disposição dos algozes, sacos estes que o próprio La Fon havia costurado.
Bourdel foi, de cima para baixo, ensacado e amarrado à cintura, conduzido até a
ponta do rochedo, e, com um forte empurrão, arremessado ao mar; caiu em água. O
golpe do corpo na água foi possível de ser ouvido de cima do cume, onde estavam
os outro que certamente teriam o mesmo destino.
Deste
pequeno grupo que resolveu não seguir viagem três (Pierre Bourdon, Jean Du
Bourdel e Matthieu Verneuil) foram executados sob as ordens do tirano
almirante.
Escrito por Rev.
Adenauer Lima
Postado por Adilson Marcos
[1]
É sabido que os franceses se faziam presentes na costa brasileira desde 1504;
de forma dispersa e desorganizada contrabandeavam principalmente madeira (Vd.
RODRIGUES, José H. História da História
do Brasil: 1ª parte: Historiografia Colonial. 2ª Ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, p. 38). Tais incursões geraram dois grandes frutos: 1) O
estabelecimento de Forte Frances no Rio de Janeiro por volta de 1555; 2) A
fundação da cidade de São Luís do Maranhão em 1612. Em ambos os casos a
presença francesa foi rechaçada pelos colonizadores portugueses.
[2]
Para informes documentais mais precisos, consultar o artigo do Dr. Francisco L.
Schalkwijk, O Brasil na Correspondência
de Calvino in: Fides Reformata,
IX, n° 01, 2004.
[3] LÉRY,
Jean de. Viagem à terra do Brasil in: Coleção Reconquista do
Brasil, (Belo Horizonte: Itatiaia & Edusp, 1980). p. 56.
[4] LÉRY,
Jean de. Viagem à terra do Brasil in: Coleção Reconquista do
Brasil, (Belo Horizonte: Itatiaia & Edusp, 1980). p. 86.
[5] Alderi Souza
de Matos no texto de apresentação da obra A tragédia de Guanabara de Jean Crespin, p. 11.
[6]
Cf. Alderi Souza de Matos no texto de apresentação da obra A tragédia de Guanabara de Jean Crespin, publicado pela Editora
Cultura Cristã em 2007. Nesta obra é possível encontra o texto integral da
“Confissão de Fé de Guanabara”.
Adilson,
ResponderExcluirmuito bom o texto.
Em época de cristãos edonistas, que buscam apenas o seu prazer, ler o testemunho de irmãos que sacrificaram suas vidas por amor a Cristo é inspirador. Sigamos o exemplo deles, e de muitos que, em nosso tempo, são vítimas dos nossos inimigos, sejam islâmicos ou comunistas [sim, há mártires cristãos hoje nos países islâmicos e comunistas, muitos perdendo bens, família e a própria vida pelo Evangelho de Cristo].
Como já tenho autorização prévia, republicarei-o no "Guerra pela Verdade".
Grande abraço!
Cristo o abençoe!